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"A nossa força está em provar serviço para a sociedade"

14/12/16

A Procuradora Regional do Trabalho, Ileana Neiva, comentou o trabalho do Congresso em aprovar às pressas e na calada da noite o Projeto de Iniciativa Popular ‘‘10 medidas contra a corrupção’’. Para a procuradora, os Congressistas usaram a desculpa de coibir o abuso de autoridade para retaliar o Ministério Público e o Judiciário.
 
Por que o ‘‘abuso de autoridade’’ é visto como uma retaliação ao Ministério Público e ao Judiciário?
O MP e o Judiciário já estão sujeitos a um controle de suas decisões. Toda decisão judicial é fundamentada e passa por diversas instâncias. Então do ponto de vista do conteúdo, sempre há possibilidade de revisão. Se o juiz agir com abuso de autoridade em uma instância, a segunda instância poderá rever. Além disso, há a responsabilidade pessoal do membro, que é visto por sua corregedoria. Então se ele fizer uma coisa errada e ficar isso nos seus assentamentos ele não vai conseguir uma promoção. 
A expressão abuso de autoridade é tratada pelo senso comum para fatos que tecnicamente não são abuso de autoridade, então nós precisamos ter realmente uma lei que defina quais são os casos de abuso de autoridade. E nós já temos essa lei.
O que se tirou naquele dia, naquela madrugada, no Congresso Nacional, não foi uma lei pra combater o verdadeiro abuso de autoridade, a exemplo de dar uma carteirada, estacionar em algum lugar que não poderia,  julgar um processo que não poderia julgar por que tinha um parente interessado, receber dinheiro pra dar uma sentença, ou o MP receber dinheiro pra não investigar. Não foi isso que se decidiu ali. O que se decidiu foi, com palavras muito vagas, retaliar os membros do Ministério Público e da Magistratura, em outras palavras, retaliar a Operação Lava Jato, que está incomodando políticos de todos os partidos.
Não é que nós não queiramos estar sujeitos à lei de abuso de autoridade. Ela já existe, e pode ser aperfeiçoada, mas da forma como foi apresentada, foi colocada como retaliação, e eles usaram institutos muito vagos. “Abuso de autoridade por manifestação político-ideológica”, “Abuso de autoridade por promover ação sem indícios suficientes”, “Abuso de autoridade por deixar de promover diligências no processo num prazo de 30 dias”. Ora, eu tenho 500 processos. Como é que eu vou dar conta de, a cada 30 dias, movimentar 500 processos? E no entanto, com o teto de gastos da PEC 55, quando vai ter concurso pra procurador? Quando vai ter concurso pra servidores? A situação é muito preocupante, pois se está dando um claro recado aos membros do Ministério Público e da Magistratura: se intimidem, não promovam ações contra poderosos! Que a resposta vem! Então quem perde é a sociedade. Eu vou caminhar pra minha aposentadoria intimidada, arquivando mais e promovendo menos ações, infelizmente. Não é o que eu quero fazer, mas é o que a gente se vê premido a fazer. 
 
MP e magistrados podem ser punidos por desvio de conduta?
Os membros do MP estão sujeito ao Conselho Nacional do Ministério Público, que não é composto apenas por membros do MP . Não é um órgão corporativista. Estão representantes da sociedade, da OAB, do Congresso Nacional e da Magistartura. Então nós somos julgados, se fizermos algo errado, disciplinarmente pelo CNMP  e se for crimes comuns, pela Justiça, como qualquer outro. Então não existe essa história que membros do MP e da Magistratura não têm controle. A Magistratura está sujeita ao Conselho Nacional de Justiça.
 
As punições não são muito brandas?
Dizem que juízes quando são punidos, a punição é a aposentadoria. Não é verdade. Existem casos de punição de juízes. Veja o caso do juiz do TRT de SP, que ficou conhecido como Lalau (Nicolau dos Santos Neto). Ele perdeu o cargo e foi preso. De acordo com a lei anterior de abuso de autoridade: a lei penal. Existe o caso do juiz Rocha Matos, que também perdeu o cargo. Então não é verdade que o juiz sempre vai ser aposentado. Pode haver aposentadoria quando se acha que ele agiu de forma indevida, mas sem que tenha havido peculato, ou seja, um erro de judicatura, mas um erro escusável. Aí uma das penas tem sido a aposentadoria compulsória que é uma pena, porque se alguém for aposentado compulsoriamente com 10, 15 anos de judicatura os salários caem muito. 
Nós não temos fugido da discussão. Como também não temos fugido da discussão para acabar com o foro privilegiado. Nossas associações defendem o fim do foro privilegiado. São os políticos que querem manter o foro privilegiado, não somos nós. Nós temos defendido uma coisa só: o fim de uma lei penal e processual fraca, que não atemoriza e por não atemorizar gera uma sensação de impunidade .
 
Qual o objetivo real das 10 medidas contra a corrupção e o que sobrou delas?
O que as 10 medidas propõem é uma lei penal mais severa que pode atingir juiz que agir mal, procurador que agir mal, político que agir mal, jornalista, bancário, trabalhador, empresário, atingir todos que descumprirem a lei. Por isso que o pacote das 10 medidas contra a corrupção preza que não se use o habeas corpus para tudo. O habeas corpus tem que ser um remédio excepcional, quando alguém vai sofrer, por ato abusivo, uma limitação à sua liberdade de locomoção. Agora habeas corpus pra trancar o inquérito? Para impedir de investigar? Essa parte do habeas corpus o que os deputados fizeram? Esqueceram os dois milhões e meio de assinaturas.
A obtenção de provas ilícitas de boa-fé. Você obteve uma prova, aí alguém diz que essa prova é ilícita, mas foi obtida de boa-fé e ela mostrou alguém realmente fazendo um ato falho. Você tem uma dúvida que alguém no sistema aduaneiro está recebendo dinheiro pra passar mercadoria sem pagar imposto, alguém finge que vai pagar propina pra ver se ele aceita e faz o teste de integridade . Teste de integridade é uma coisa absurda? Não. Como diz aquele ditado “não basta a mulher de César ser honesta, deve parecer honesta”. Então o teste de integridade só pode atemorizar quem for desonesto. Porque se for feito o teste de integridade para os honestos vai dar tudo ok. O que é importante do teste de integridade? É que você previne a corrupção. 
Hoje se você não tem elementos de que alguém é corrupto e ele faz atos de corrupção, e desvia milhões, qual a possibilidade de você recuperar este recurso? Antes da Lava Jato, o máximo que tinha se conseguido de devolução tinham sido seis milhões. Após a Lava Jato, isso mudou para bilhões. 
Então, por isso, nas 10 medidas, nós propusemos que aumentasse a devolução dos recursos, a participação do MP nos acordos de leniência. Porque o MP é um órgão independente e acordos de leniência podem ser feitos por governos que podem querer se beneficiar. Apesar de confiar-se muito na Controladoria Geral da União e tal. Mas procurou-se com aquelas 10 medidas tornar o processo penal mais efetivo. Mais punitivo. Não no sentido de superlotar as penitenciárias, mas, pelo contrário, que os crimes de colarinho branco fossem punidos. Porque as nossas penitenciárias estão lotadas de pretos, pobres e prostitutas. Infelizmente. São as camadas mais pobres da população , que não têm dinheiro para contratar bons advogados, que não têm dinheiro para fazer sucessivos recursos que têm conseguido procrastinar ou impedir a aplicação da lei penal.
Imagine uma lei penal que prevê que mesmo o réu estando foragido a prescrição corre contra ele. Em vez de se entregar à Justiça, ficar à disposição para responder a ação, você foge. E no tempo que você está em fuga, a Justiça está dia a dia perdendo a possibilidade de puni-lo. Isso privilegia quem? Quem tem dinheiro na Suíça, quem pode fugir, bancar a vida em outro país. O réu pobre, o réu sem condições, a lei penal é muito dura. 
E essas 10 medidas foram desfiguradas e se inseriu ali insidiosamente medidas para punir as autoridades que estão fazendo a investigação.
 
O que seria mais ardiloso nessa lei?
A atividade do MP e do judiciário sempre vai desagradar a alguém, porque nós estamos resolvendo uma lide, e ao resolver uma lide sempre vai haver alguém desagradado.
No âmbito penal, aquele que perde sua liberdade de locomoção vai sempre poder dizer que foi o membro do MP que exagerou ou foi o juiz que exagerou. No âmbito das relações civis e trabalhistas, aquele que foi incomodado patrimonialmente vai sempre dizer que houve um abuso de autoridade.
Considere que é manifestação político-ideológica vedada aos membros da magistratura e do Ministério Público se opor a uma determinada interpretação legal. Então,  suponhamos que um deputado diga que é impossível ter Sistema Único de Saúde para todos e um membro do MP diga é possível sim, porque a Constituição Federal diz que tem. Então o membro do Ministério Público entra com uma ação para obrigar a dar assistência de saúde a toda uma população. Aquele membro do Ministério Público vai ter uma manifestação politico-ideológica por isso? Você vê que é uma armadilha tão grande pra nós que, se você não agir rápido, é crime de abuso de autoridade. Se você agir rápido e alguém considerar que não há indícios mínimos de prova, também é abuso de autoridade. 
Eles usaram expressões vagas como ‘‘manifestação político-ideológica’’ e ‘‘falta de mínimos indícios’’ para punir os membros da magistratura e do MP. Porque se eu ingresso com uma ação, eu acho que tenho todas as provas, mas se lá na frente um juiz, 10 anos depois, disser “não ela ingressou com a ação sem o mínimo indício”. Se ele usar essa expressão eu já estaria sujeita.
Vamos supor que lá na frente a minha ação seja julgada improcedente aí o juiz diga improcedente por falta de provas. O que é muito comum no meio jurídico. Então o réu daquela ação vai dizer: “olha, se o juiz diz que há ausência de provas, a procuradora propôs a ação sem os mínimos indícios”. Isso está fazendo com que ela esteja sujeita na lei tal como abuso de autoridade. E aí aquela ação que eu tinha pedido uma indenização por dano moral no valor de R$ 1 milhão quem vai ter que pagar esse um milhão, sou eu. Qual é o procurador, diante de um quadro desse, temendo pelo seu sustento, de sua família, vai entrar com uma ação e pedir uma indenização de um milhão? Então a sociedade vai ter que conviver com procuradores mais acovardados, e procuradores mais acovardados é pior para a defesa da sociedade.
Hoje eu tenho a certeza de que eu posso fazer uma ação e pedir uma indenização que tem um caráter punitivo e pedagógico contra uma instituição bancária que pratica assédio moral e que, se essa ação for julgada improcedente, porque o juiz entendeu que não há assédio, eu não vou ser processada por abuso de autoridade. Porque havia uma tese válida. Nenhum de nós propõe uma ação açodadamente. Porque nós temos o instrumento do inquérito civil. Nós ouvimos testemunhas, nós instruímos bem o processo e quando ingressamos com a ação, essas provas são repetidas em juízo, novamente passa pelo crivo de um julgador, aí se ao final o julgador entende que são provados os fatos, estão provados os fatos. Se ele entender que não, não estão provados os fatos. A gente não se conformou com a decisão de primeira instância, a gente recorre pra segunda instância e assim sucessivamente, mas o processo traz garantia, o devido processo legal, o contraditório, são observados.  Não existe essa história de que é garantia da sociedade o investigador ser punido, ou o juiz ser punido, a garantia da sociedade é o contraditório e a ampla defesa. O remédio não é punir o investigador.
 
O momento político pode ter prejudicado a aprovação das medidas?
O que se discutiu foi justamente isso. O Ministério Público colocou as 10 medidas de combate à corrupção justamente porque no momento em que se discute a corrupção, se entendeu que era conveniente a sociedade participar desse processo. Ser esclarecida de porque o Ministério tantas vezes ingressa com a ação e não dá em nada. A sociedade tem esse sentimento de impunidade. Então o Ministério Público diz para a sociedade: “Sociedade, nós ingressamos com várias ações. E essas ações não têm êxito, por causa de obstáculos no caminho do processo. Esses obstáculos são o uso indiscriminado de habeas corpus, a prescrição penal, o fato de que não conseguirmos ressarcir o erário, a existência do caixa dois, os partidos políticos não responderem por esses tipos de crimes. Então a gente diagnosticou o porquê de tantas ações antes da Lava Jato não terem tido êxito. E quais eram os obstáculos. E a Lava Jato é considerada um ponto fora da curva porque se conseguiu fazer com que os erros do passado – erros que eu digo assim, de não se conseguir fechar melhor as investigações - fossem corrigidos. Conseguiu ter cooperação internacional pra poder ter troca de informações, a gente foi aprendendo cada vez mais a investigar melhor tendo a cooperação internacional, tendo a informatização a nosso favor. Hoje sem os bancos de dados, sem a informática também teria sido difícil. Então a Receita Federal está mais informatizada, os órgãos têm mais condições de ter o intercâmbio de informações. Mas se no caminho há uma prescrição, há excessivos trancamentos de inquéritos, o tempo passa e a impunidade vigora. Por isso, para a sociedade entender que pra gente ter uma melhor percepção penal era preciso mudanças, nós expomos para a sociedade quais eram essas mudanças, e propusemos que houvesse um projeto de iniciativa popular. Quem assinou, antes de assinar tinha explicações de membros do Ministério Público. Nós chamamos aqui vários sindicatos, foi uma exposição do que significa cada uma das 10 medidas. Além dessa exposição presencial, estavam nas páginas da Internet.
Quando nós temos um Congresso Nacional, em que muitos respondem ações penais, é claro que foi o sentimento retaliatório que motivou, num projeto que era de combate à corrupção, a inserção do abuso de autoridade como dispositivo. É como se dissesse assim: em vez de nós apreciarmos as 10 medidas contra à corrupção, nós não vamos aprovar aquelas medidas que nos prejudicam como réus, e vamos inserir dispositivos para amedrontar os investigadores e a Justiça. Em suma foi isso.
A Lava Jato estava no meio, e porque eles mesmos sentiram o efeito da Ficha Limpa. Então os políticos  já vinham do rescaldo de não terem gostado dos efeitos da Lei da Ficha Limpa e eu acho que pensaram “é conferir muito poder ao povo, eles ficarem toda hora com essa história de lei de iniciativa popular e a gente dizendo amém”. A Lei da Ficha Limpa excluiu muito político de eleição, teve que botar filho, botar parente. Criou uma dificuldade operacional. Então vamos criar uma nova dificuldade operacional para as nossas vidas com essas 10 medidas contra à corrupção?
  Acho que isso explica a votação de políticos. E outra questão que é fundamental: algum jurista não gostou das medidas. Há divergência? Então vamos na Comissão de Constituição e Justiça discutir? O parlamento é o local da discussão. Então vamos discutir de novo, vamos chamar o Ministério Público, vamos chamar a Magistratura, chamar o povo, chamar professores universitários. Mas não houve discussão. Simplesmente se matou. Se distorceu. E se veio com essa história do abuso de autoridade. Então há relatos de que os deputados estavam votando pensando no tinha acontecido com eles, com seus familiares. Com medo de que a Operação Lava Jato os atingisse. E isso não é um sentimento republicano, não foi pra isso que foram eleitos.
 
Algumas pessoas apoiaram a lei de abuso de autoridade, principalmente pelas redes sociais. Como a senhora avalia isso?
Primeira coisa que nos chocou, um projeto de iniciativa popular ser desprezado dessa maneira e ser utilizado como uma punição aos investigadores. 
Outra coisa que se fala muito é que fazemos parte de uma elite salarial. Estão publicando na internet posts de salários altos do pessoal da Lava Jato. Falsos. Nenhum procurador ganha 60, 80 mil por mês. As pessoas têm as páginas do portal da transparência para verificarem quanto é a remuneração. Então tudo é uma repetição da Operação Mãos Limpas, da Itália, que procurou fazer a opinião pública se voltar contra juízes e procuradores dizendo que eles praticaram abusos. 
 
Como mudar esta percepção?
O Ministério Público não quer estar dentro dos gabinetes, quer estar junto com a sociedade.  E isso não é manifestação político-ideológica. Você fazer uma leitura da Constituição e dizer que ela tem ideologicamente um lado, que é o lado da realização dos direitos fundamentais: saúde, educação, segurança pública, lazer, direito a não discriminação, seria manifestação político-ideológica?  Esses direitos fundamentais, sociais dos trabalhadores, se eles são manifestados em algum contexto que alguém ache que é político-ideológico, o membro do MP vai ser penalizado por isso.
Então é por isso que nós lutamos contra esse projeto de abuso de autoridade que está aí. Não porque queremos estar acima da lei, mas porque queremos mostrar serviço pra sociedade. E isso não é demagógico. É porque é fato.
Quem é que vai arriscar seu emprego, que sustenta sua família? Nós somos servidores públicos como qualquer outro. Nós não temos poder político nem econômico. A nossa força está em provar serviço pra sociedade. E é isso que estamos dizendo pra sociedade: queremos trabalhar, e para isso, não podemos ser enfraquecidos.